Mil Nomes, Guardião do Infinito - Personagem e Autor em Evolução Espiritual

Crítica do Livro “Mil Nomes” de JRP



Ao completar a leitura de Mil Nomes, romance de José Roberto Pereira Saito divulgado como “light-novel”, a primeira lembrança que me vem à cabeça é o antigo best-seller dos anos 70, “Fernão Capelo Gaivota”.


Neste famoso romance de Richard Bach, acompanhamos o inconformismo da gaivota homônima para com o status quo do bando de aves ao qual pertence, e sua busca individual pela perfeição através do aprimoramento, cada vez mais sofisticado, de suas técnicas de vôo.



Em Mil Nomes, a metáfora do aprimoramento espiritual é muito mais explícita, e acaba por evocar a trajetória de Fernão Capelo em virtude do tom messiânico que persevera ao longo de ambas as narrativas.



A trajetória de (re)descoberta do menino Hector com sua essência espiritual, resgatada naquele universo de pensamentos e símbolos após inúmeras encarnações, guarda enorme semelhança não apenas com a evolução da gaivota, mas também com as jornadas de autoconhecimento dos livros de Carlos Castañeda (“A Erva do Diabo”), e o didatismo com que este Supra-Mundo é apresentado ao leitor — a despeito da inclusão de elementos da cultura pop, como referências simbólicas de super-heróis, quadrinhos e música eletrônica dos anos 80 — remete tanto às teorias neurolinguísticas quanto às concepções simplistas de Rondha Byrne, a autora de “O Segredo”: “Peça, e o Universo te atenderá”.



Tal similaridade não me pareceu intencional. De qualquer modo, a trajetória do protagonista segue o molde clássico da “jornada do herói”, sendo que nos próprios textos de divulgação do livro, via site, blogs e podcasts, José Roberto Pereira Saito faz questão de reafirmar esta procedência como verdadeira.



O conceito das missões, do papel de Mil Nomes como herói e guardião do infinito, das explicações sobre o funcionamento das idéias e crenças na mente das pessoas, das revelações sobre as várias facetas da vida, da morte, da completitude e complexidade do amor materno, todos estes elementos evocam a noção de revelação de verdade espiritual, similar à dos livros citados anteriormente. E a própria importância que o protagonista adquire ao perceber quem ele é de fato, ao confrontar sua versão futura, faz com que o texto assuma ares messiânicos (“eu sou a verdade, o caminho e a luz”), voltando mais uma vez à semelhança com o livro de Richard Bach.

Certamente, o mais interessante do livro é justamente a ruptura final, quando o caminho a ser adotado pelo trio principal de seguir a autoridade constituída (L'Os) é renegado em prol da busca da autonomia, de seguir o próprio caminho. Essa é a mensagem mais importante da história, e porque não dizer, uma forma de metáfora coroando a própria vida pessoal do autor e seu contínuo e perpétuo discurso em prol da liberdade pessoal como valor máximo de uma pessoa, e da inconformidade e da rebeldia levado às últimas conseqüências. Esse é o grande diferencial em relação às teses defendidas nos três livros supracitados: um modelo cosmogônico de funcionamento do universo é mostrado, mas a autoridade sobre o coletivo (ou divindade suprema) é renegado em prol de outra verdade maior ainda: a verdade do indivíduo, pessoal, particular, intransferível.




Um dos pontos altos do texto de Mil Nomes é a monumental capacidade inventiva de seu autor de criar descrições misturando elementos e referências cênicas de forma a tornar praticamente impossível passar toda a riqueza do texto para uma ilustração. Inclusive, a despeito da grande qualidade do traço de sua ilustradora, pessoalmente, senti enorme distância entre a riqueza de detalhes das descrições e aquele estilo de traço de mangá “clean”, de poucos elementos de detalhe (como os de Ossamu Tezuka ou da Rumiko Takahashi), mas preservando a essência da forma e a elegância das figuras. Não entendam isso como uma crítica negativa, pois não sei se seria o caso de ilustrar este romance com imagens saturadas de detalhes como os desenhos de Geoff Darrow - Hard Boiled, em parceria com Frank Miller. Simplesmente constatei a dicotomia, e ainda que não compreenda o porquê, há algo de proposital nesse descompasso entre o estilo simplificado da arte e a exuberância descritiva no texto.


Infelizmente, há que se criticar o tom extremamente explicativo, praticamente doutrinário, ao exibir e explicar o Supra Mundo logo após o menino Hector deixar o Devakan e ir atrás de seu destino. A impressão que tive foi semelhante à crítica que dirigi ao quadrinhista (e pesquisador) André Toral, numa convenção de quadrinhos (Poli-USP - 1992), acerca de seu recém-lançado álbum “Um Negócio do Sertão”: na minha visão, ele estava tão fascinado com a pesquisa que fizera para escrever a obra, que a vontade de colocar toda essa riqueza acabou sacrificando o lado ficcional, a força da narrativa (o final de “Negócio” me pareceu decepcionante face ao andamento da história e dessa mesma riqueza de referências pesquisadas apresentada). A mesma crítica do fascínio pela pesquisa comprometendo o andamento da história cabe aqui, e fico extremamente satisfeito de constatar que, ao abandonar o professoral e entrar na ação propriamente dita, a narrativa de “Mil Nomes” encontrou o seu rumo e caminhou para um final satisfatório.



Aproveito para comparar com o livro pregresso de José Roberto, “Mundos Sem Sol”: a despeito da mesma riqueza descritiva já estar presente neste primeiro romance, a impressão que tive ao comparar ambos os livros é que a narrativa do primeiro fluiu incrivelmente melhor do que a do “Mil Nomes”: todavia, e acredito haver algo de extremamente (mal)intencional, o final de “Mundos Sem Sol” pareceu-me precipitado, desconexado de todo encaminhar da narrativa até aquele ponto, praticamente uma ofensa à expectativa do leitor. Embora haja a metáfora do despertar de um sonho (especialmente com a questão da frustração do sonhante, ou no caso, o leitor que vinha acompanhando a história), a inabilidade com que a passagem da trama para o final tornou a experiência do livro extremamente frustrante.



Este segundo livro traz consigo, numa forma de metáfora que chamo de “realidade reinventada”, muitas das convicções particulares do autor, filtradas na forma de situações e ambientes narrativos. E, se por um lado, reclamei do excesso doutrinário do desenvolvimento do texto em sua primeira metade, por outro, só tenho elogios a fazer acerca dos clímaxes e da reviravolta da trama. E principalmente, elogio à coerência entre vida e discurso pessoal, devidamente retratados num texto de ficção.


Capa do Livro e desenhos de Márcia Harumi Saito. As ilustrações em preto e branco deste post, com minha arte-final, não foram utilizadas no livro.

Comentários

  1. Fernando Aoki, tu escreve com termos mais rebuscados que eu! @__@ Que medo!!
    Isso me lembra que eu preciso escrever uma crítica pro livro do Bk também!

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  2. “Termos rebuscados”? Verdade... obrigado por me lembrar porque eu larguei mão de escrever histórias em quadrinhos, puta troço chato que eu cometia!

    Aliás, eu mesmo estava devendo esta crítica ao BK faz muito muito e muito tempo! Agora me livrei deste encosto.

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  3. Está bem vista essa comparação com a obra de Richard Bach. Não me tinha passado pela cabeça mas acho que tens alguma razão embora eu tenha a certeza que as semelhanças não terão sido intecionais. Apenas tudo isto faz parte da própria estrutura deste género de histórias e como tal as referencias cruzam-se sempre.

    Também achei uma overdose de informação ao longo do livro e também fiquei com a ideia de que o autor tinha tanto para contar que não conseguiu esperar pelas sequelas do livro para espalhar todos os excelentes conceitos por vários volumes, mas não o posso levar a mal pois eu acho que fiz o mesmo sem querer no meu próprio trabalho de banda-desenhada(quadrinhos para vocês). É inevitavel quando temos montes de ideias a quererem saltar cá para forma desejarmos mostrar logo tudo e mais alguma coisa aos leitores.

    Neste caso acho que apesar de tanta informação puder ter prejudicado um pouco o ritmo da história (daí eu ter referido que não deixa de ser um livro dificil de se ler), acabou por dotar todo o universo de uma personalidade unica que de outra forma teria sido diferente e se calhar pareceria menos original.

    Por isso pela minha parte eu gostei do que li e espero que o J.R escreva mas é uma sequela rapidamente pois acho que ainda se consegue fazer muita coisa fantástica com estes conceitos e personagens.

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  4. Obrigado pelo comentário, Luis.

    Só teria a acrescentar uma recomendação de minha ex-professora de redação do colegial, que me disse que há que se escolher sim o que deve ser cortado de tudo o que foi criado e inventado, do contrário, você perturba o fluxo da narrativa, atrapalhando o andamento da história.

    E eu entendo que isso seja tão doloroso quanto escolher qual filho dentre os seus deve ir com os nazistas (a famosa "Escolha de Sofia"). Mas, o corte TEM que ser feito, do contrário, na maior parte dos casos, não há habilidade o bastante para MANTER TUDO O QUE FOI CRIADO sem f*er com o andamento da história. Pergunte ao André Toral, ou compare a versão de um filme com a versão com extras de cenas cortadas (droga, não me vem nenhum bom para servir de exemplo... Apocalypse Now, Blade Runner, ih tudo coisa muito velha!)

    Ah, pergunte ao J.R., que escreve e reescreve trocentas vezes antes de sair a versão final de seus textos. É importante TER TUDO EM DETALHES, dominar bem o assunto e não criar contradições que acabem f*endo com a história, mas é igualmente importante deixar alguma coisa para o leitor concluir ou mesmo intuir, e deixar a trama rolar!

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Elogio ou crítica? nunca censuro nada, mas... não ABUSE! hehehe

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