Indo longe demais na retomada...

A tarefa deveria ser simples. Atender a demanda, isso bastava.

Uma tarefa simples e banal, sem complicação, de entrega simples. Apenas meia hora do meu tempo, nada sofisticado, elaborado. Apenas a retomada após uma devastadora e prolongada hibernação, sob os auspícios da procrastinação permanente.

Era uma premissa interessante: se eu me sentia bloqueado em função da grandiosidade e da quantidade de elaboração que apliquei na reconcepção de meus personagens e de minha série, e se era o vulto e a premisumível trabalheira que vislumbrei para materializá-los que me fazia travar e partir para uma procrastinação permanente, então eu deveria me exercitar com coisas muito menores e menos intimidadoras.

Seria como um simples exercício descompromissado, como aqueles treinos copiando desenhos de anatomia só para melhorar a técnica: não é para fazer e sair por aí mostrando, é desenferrujar músculos. Praticamente como um ex-praticante de atividades físicas que resolve retomar os exercícios, e sob recomendação médica, começa com atividades leves, no limite de peso suficiente para fazê-lo se sentir ativo novamente, mas sem chegar a forçá-lo, a confrontá-lo com limites físicos que poderiam machucá-lo e inviabilizar sua capacidade de se exercitar novamente no futuro.

Foi uma grande ironia eu mesmo ter sugerido no último post deste blog que, se uma pessoa não soubesse muito sobre a arte de quadrinhizar situações, então que tomasse algo beeem descompromissado e insípido/inodoro (do ponto de vista afetivo e emocional), como um vídeo divertido do youtube, para transcrever as cenas paradas do vídeo, escolhendo as mais marcantes e a partir da recriação da trama como uma fotonovela (ou desenho a partir dos fotogramas), aprendesse noções sobre quadrinhização que poderia usar em sua própria história.

Mal percebia eu que, com todo o encaminhar de minha trajetória profissional desvinculada dos quadrinhos para a direção de projeto e programação visual (e recentemente, criação de conteúdo a partir de vantagens e benefícios de produtos), eu mesmo deveria exercitar minha retomada da forma que recomendei aos iniciantes: tomando como inspiração um material descompromissado e (principalmente!) emocionalmente indiferente. Eu não posso me tratar como o ex-praticante de esportes que resolve retomar carreira. Eu sou o cara que ficou anos acamado, com o corpo definhando, que um dia se vê em condições de sair da cama, mas para fazer coisas bem simples, como sentar, se levantar e dar alguns passos, tem que aprender tudo do zero, tem que reaprender tudo. Não se trata simplesmente de recondicionar o corpo: Fisioterapia é a palavra correta!!! E do tipo reaprender a andar mesmo!

Certo, e por que não houve esse exercício de retomar atividade com algo bem simples, como as anteriormente citadas fotogrametrização (ou fotonovelização) de vídeos curtos de youtube, os irônicos ou os engraçados? Tudo totalmente desvinculado emocionalmente, sem o menor risco de adiamentos por razões emocionais, aliado à proposição de, sendo um exercício de desenferrujamento, jamais seria necessário mostrá-los a quem quer que seja?

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… A ideia idiota! Pretensiosa, um exercício de prepotência no final das contas!

Parecia ser tranquilo, sem maiores dificuldades, e uma retomada digna de um suposto legado no meu imaginário no qual eu me imaginava como um grande talento do quadrinho nacional que, a pretexto de falta de perspectivas profissionais (que acobertaram as verdadeiras razões de acovardamento puro) se afastara do meio e que agora iria retornar e deixar a todos de bocas abertas com a alta qualidade de seu trabalho, de sua ficção. O legítimo representante da velha anedota de “A volta dos que não foram”, tão utilizada em piadas dos fins dos anos oitenta e que na verdade nunca soube qual era o sentido dessa anedota em si, mas apenas vim vivenciando desde que abri este meu blog numa tentativa de reconciliação com meu passado renegado e abortado de criador de narrativas.

O paradoxo de sempre condenar os autores que, a despeito de suas limitações, expunham à luz, ao conhecimento público, suas artes, suas histórias, condenados por mim pela flacidez de ideias, independente do quão elaborados ou até mesmo bonitos tenham ficado seus desenhos. Condenei-os por praticarem ficções que me doíam ao intelecto e eu mesmo via meus próprios devaneios crescerem como boas narrativas, convincentes, comoventes, mas que aprisionadas em forma de pensamentos sem sequer se fazerem presentes na forma de rascunhos, nunca eram postas à prova da leitura de outros como os quadrinhos deles estavam sendo. E essa inveja me consumia, e eu a disfarçava com um discurso, com desenhos velhos feitos por um jovem mal saído da adolescência que era um arremedo de recortes, microplágios e fanfics retirados de várias obras diferentes, mas de costura tão pífia e tão incipiente que só com muita boa vontade você perdoa, e apenas se levar em conta a idade e inexperiência da pessoa à época, no agora longíquo ano de 1986.

Se, se, e se. Condicionais. E especulações mentais, autossabotagens, procrastinações, fuga para atividades prazerosas como joguinhos de computador (e agora de celular), qualquer dispersão para evitar sentar numa cadeira e sair rascunhando, rabiscando, ou mesmo num processador de texto para desfiar anotações e observações úteis em construção de situações, tramas, dramas e personagens. No entando, o maldito do discurso estava lá.

O discurso de “eu mereço mais do que simplesmente desenferrujar minha prática com um mero exercício de quadrinhizar um vídeozinho engraçado, daquele tipo vídeo-cassetada ou ‘porta-dos-fundos’”. E o que, na minha visão deturpada e prepotente até além da tolerância, seria um exercício básico e sem maiores dificuldades, face à paralisia que vinha (e venho) demonstrando em realizar as historinhas do homem-de-lata com alma-de-poeta (tá mais pra “pateta”, que nem o criador dele, sim, cabe direitinho o velho clichê do protagonista ser um espelho do autor, definitivamente fugir à obviedade foge à minha capacidade, só me sobraram a inventividade em rimas porcas). Explicando o citado exercício: consistia fazer um trabalho mais leve e menos emocionalmente conectado comigo, uma trama curta onde eu especulava com personagens secundários do universo do Alma de Aço, num momento do futuro após o encerramento da série principal. Praticamente um fanfic, só que com personagens de minha própria lavra. O raciocínio parecia interessante: sendo personagens secundários, e estando temporalmente desconectados da série, ou seja, o que fizessem naquele momento não iria influenciar o destino da saga (aquela praga!).

Era para ser uma brincadeira descompromissada, inconsequente, para destravar mesmo. Deveria ser curto, poucas páginas, oito, dez, doze. Não deveria ser algo digno para ser mostrado a quem quer que fosse, embora, a título de terapia, eu devesse me impor alguma espécie de entrega para checar os progressos (não logrei fazê-lo).

Ao invés disso, eu criei uma pequena trilogia sobre monstros criados pela ciência humana (apesar de se passar num universo alien, os protagonistas envolvidos são humanóides o bastante para eu considerá-los humanos), questionando a si mesmos, ao seu propósito de existência (dando continuidade às questões fundamentais do seriado do Alma de Aço, só que sendo uma espécie de desdobramento), contrapondo-se à forma como os seres humanos de geração e criação biológica (não dá pra chamar de espontânea, tirando a arte e a caganeira, nada do que o ser humano faz é espontâneo, tudo é pensado e planejado, proposital enfim, o que ocorre são imprevistos na execução!). E ganhei mais um bloqueio criativo, o exercício de destravamento ganhou asas maiores do que o esperado e agora é mais um backlog para me cobrar a dívida de sangue… quero dizer, a dívida em existência, em nascer e sair dos recônditos seguros da minha mente para o mundo hostil da crítica alheia!

(fim do episódio - “owari”)

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